quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Morte Piedosa (fanfiction)

E depois de meses sem atualizar, eis que surjo com uma fanfiction. Tava na hora de publicar algo assim, eu acho.
Essa é pra quem gosta de Entrevista com o Vampiro.

Pra quem não leu Entrevista com o Vampiro nem viu o filme, uma rápida contextualização (com spoilers...sorry): Cláudia era uma garotinha que Louis havia mordido, e pensara que estava morta, até que Lestat a trouxe para ele e a transformou em vampira. Eles viveram mais de 30 anos juntos, até que Cláudia tentou matar Lestat e ela e Louis fugiram. Quando estavam em Paris, encontraram o Teatro dos Vampiros, comandado por Armand. Lá, existia uma congregação de vampiros que considerava o que Cláudia havia feito um pecado mortal, e por isso ela foi morta por eles.
Outra observação, o livro que me baseio é A Rainha dos Condenados, narrado pelo Lestat, mas como é um POV do Louis eu dei preferência ao estilo de Entrevista com o Vampiro (narrado por ele).
Enjoy! (:

Morte Piedosa

Eu gostaria que estivesse nevando naquela noite. Estava frio o suficiente para isso. Mas o céu parecia se recusar a ouvir meu pedido, assim como eu recusara a acompanhar Lestat em sua caçada. Ele não precisava mais disso, dissera. Então por que continuá-lo?

De qualquer forma, eu havia recusado. E não havia sido completamente verdadeiro em minhas palavras. Desejava agora, talvez mais do que nunca, sua companhia. Mas havia algo dentro de mim, um pensamento que persistia já há algum tempo, uma cisma... Não, mais do que isso.

Morte. O maior êxtase para um vampiro é sentir os batimentos do coração humano lutarem desesperadamente para viver no último instante, enfraquecendo enquanto todo o fluxo de sua vida flui para nossas gargantas. O maior êxtase, meu melhor e às vezes único momento de paz, e ainda a maior culpa para mim.

“Você é o mais predatório entre todos os imortais aqui presentes: mata sem se preocupar com a idade, o sexo ou a vontade de viver.” [1]

A voz dela, da Mãe [2], ou da Rainha dos Condenados como Lestat a nomeava em seu livro, ainda ecoava em meus pensamentos.

Eu tinha plena consciência disso, de que matava indiscriminadamente. Essa era a maneira que eu havia encontrado para assumir minha natureza de condenado. Mas apesar disso, e Lestat fazia questão de lembrar, isso nunca foi algo que eu realmente superei.

Com o frio que fazia, mesmo numa cidade grande, a maioria das pessoas estava em casa. Ainda mais numa rua de bairro como aquela, onde minha única companhia, fora o céu sem estrelas e as paredes acinzentadas, eram os imensos postes de luz – inconcebíveis duzentos anos atrás perto dos lampiões de luzes amareladas.

Aquela luz iluminava demais, e nos fazia parecer ainda mais fantasmagóricos. Estando já há algum tempo sem me alimentar, era muito provável que eu assustasse um humano que estivesse passando por ali. A rua, porém, estava deserta. Os únicos ruídos que eu podia ouvir eram o chiado dos aparelhos de televisão dentro das casas, e o zumbido constante das lâmpadas nos postes.

Eu não saberia dizer o que eu estava procurando, e ainda não sei. Mas talvez eu tenha encontrado. Ou, como costuma acontecer comigo, foi ela que me encontrou.

Era uma presença ínfima. Eu acreditaria que fosse um animalzinho ferido, se não fosse o choro constante e baixo, extremamente humano.

Aquilo imediatamente trouxe uma lembrança das mais dolorosas à minha mente. A criança doente, que encontrei à beira da morte chorando sobre o cadáver da mãe, no meio de uma vila desolada pela peste. A criança que viria a se tornar minha filha e ao mesmo tempo amante imortal, por um erro meu e um capricho de Lestat.

Cláudia... Acho que cheguei a murmurar seu nome, enquanto apertava meu passo em direção ao beco escuro, onde as luzes dos postes mal chegavam.

Minha mente parecia estar querendo me pregar uma peça. Eu sabia que não poderia ser ela, tinha que ser uma alucinação – e ainda assim seu rosto angelical era a única coisa que eu tinha em mente quando cheguei até o beco.

Era real. Uma menina, mais velha do que Cláudia. Tinha cabelos negros, a pele muito clara. O corpo estava começando a assumir formas de mulher, a julgar pelos seios que despontavam timidamente e a curva quase inexistente da cintura.

Estava chorando, e seu frágil corpo sacudia a cada soluço de cortar o coração. Usava uma roupa excessivamente vulgar, uma blusa decotada e uma saia curta, que contrastavam imensamente com suas feições de menina.

Ela ainda não tinha me visto. Enxugou as lágrimas, a maquiagem carregada borrando seu rosto e suas mãos.

O que era aquela figura? Um anjo caído, um pequeno ser que tivera as asas cortadas e fora obrigado a cair no inferno que é aqui embaixo. Enquanto minha Cláudia escondia uma malícia perturbadora dentro de um corpo de querubim, aquela garota parecia justamente o contrário. Um anjo travestido de demônio, ainda conservando toda a inocência e fragilidade que possuía. Cláudia era uma mulher presa num corpo de criança, e aquele ser que eu via agora era uma criança a quem obrigaram muito cedo a se transformar em mulher.

A ironia cruel daquilo tudo me atingiu em cheio, deixando-me tonto. Mas não foi o suficiente para impedir que eu me aproximasse dela. Por que eu estava sendo atraído? Por piedade? Por sua semelhança com Cláudia? Ou era apenas a minha sede insuportável?

Ajoelhei-me ao seu lado e estendi minha mão para tocá-la. Ela me viu, assustou-se e encolheu-se ainda mais, encarando-me como se eu fosse seu predador. Agora que podia ver seu rosto mais claramente, reparei em vários pequenos hematomas.

- Meu anjo, o que fizeram com você? – murmurei, mais para mim mesmo do que para ela.

Minha mão continuava estendida no ar. De quantas maneiras erradas a haviam tocado, para ela recusar minha aproximação daquele jeito? Ela me encarava, seu olhos rasos de lágrimas, o lábio inferior trêmulo. Mesmo àquela distância eu podia sentir seu calor. A despeito do frio, ela estava surpreendentemente quente. Tão quente que provavelmente estava febril.

Aos poucos, o choque da minha aproximação foi se abrandando em suas feições. Talvez fosse minha voz sobrenatural, ou a minha palidez excessiva, ou simplesmente um delírio de febre. Fosse o que fosse, estendi meus dedos e toquei seu rosto. Ela não se moveu. Continuava olhando-me nos olhos, e de repente pareceu compreender alguma coisa que eu mesmo não havia percebido.

- Você... – ela murmurou, um fio de voz saindo de seus lábios delicados. – Veio me buscar?

- Buscar... – repeti a palavra, como se aquilo me ajudasse a lhe dar um sentido.

- Vai me levar para o céu... Não vai? – seus olhos voltaram a se encher de lágrimas.

Senti os meus olhos também encherem-se de lágrimas, e a abracei, trazendo seu rosto para junto de meu peito. Ela não ofereceu nenhuma resistência, agarrando-se à mim como se eu, com meu corpo gelado, pudesse mantê-la aquecida.

O que eu era para ela? Um anjo? A morte? Sentia suas lágrimas quentes molhando a frente do meu casaco, e a trouxe ainda mais para mim.

- Sim, minha querida... – murmurei, próximo ao seu ouvido. – Vamos para o céu, e não haverá mais dor. Ninguém mais poderá tocá-la.

Ela concordou com a cabeça, chorando baixinho. Levantei-me, segurando-a no colo, e beijei seu rosto úmido, sentindo meus lábios queimarem de encontro àquela pele quente. Podia ouvir seu sangue pulsando. Inebriado pelo calor e pelo gosto salgado das lágrimas, desci meus lábios e cravei os dentes em seu pescoço. O sangue quente, escaldante, jorrou imediatamente para a minha garganta. Seus dedos apertaram-se contra meu corpo; ela estremeceu.

Sangue inocente correndo pelas minhas entranhas! Seu coração era como um tambor em meus tímpanos, resistindo bravamente, agarrando-se à vida, apesar do seu desejo em deixar este mundo.

Minha respiração ficava mais forte à medida que a dela ficava fraca; mergulhei por completo naquela sensação por longos minutos, até que seu aperto em volta de mim começou a afrouxar.

Um suspiro, um gemido fraco, e ela pendeu inerte em meus braços. Tonto, cheio de sangue quente correndo pelas veias, ajoelhei-me novamente e apoiei seu corpo sem vida no chão. Olhei para seu rosto ainda molhado de lágrimas e toquei-o novamente. Esfriava rápido. Seu calor estava agora em mim.

Vi minhas próprias lágrimas caírem sobre sua pele alva, manchando-a de vermelho. Um anjo caído. Um anjo morto.

Olhei para o céu, as lágrimas vertendo sem parar. Não importava o quanto eu procurasse; quanto mais eu buscava a verdade, mais eu acabava afogado em mentiras. Ela era uma mentira, uma menina em roupas de mulher. Assim como Cláudia tinha sido uma mentira, uma ilusão doentia criada por Lestat de uma família perfeita.

Assim como eu era uma mentira. Tinha sido para aquela garotinha seu anjo, seu salvador, e no entanto não era melhor do que qualquer outro predador que ela tivesse encontrado.

Cláudia... Eu a amei desde o momento em que seus bracinhos rodearam meu pescoço. E eu amava aquele delicado ser imóvel à minha frente, para quem eu tinha sido a mais sincera de todas as mentiras.

Ouvi uma gargalhada explodir atrás de mim. Assustado, olhei para trás e vi Lestat apoiado na entrada do beco.

- Ah, Louis – ele balançou a cabeça, sorrindo. – Se eu não o conhecesse, diria que são lágrimas de crocodilo!

- Lestat, por favor – comecei, desviando o olhar dele. – Deixe-me em paz.

Ele me ignorou, aproximando-se e ajoelhando ao meu lado. Olhou para a garota, e depois para mim.

- Louis, o piedoso! É assim que deviam chamá-lo! - tornou a rir, deixando à mostra os caninos brancos.

- Pare com isso! – explodi, zangando-me. – É desprezível.

O sorriso dele se desfez. Ele me encarou, segurando meu rosto com ambas as mãos.

- Faço isso porque estou feliz. Você continua quase tão humano quanto no dia em que o transformei! Não vê que é por isso que o amo?

Ele me beijou em ambas as faces, onde as lágrimas tintas de sangue haviam escorrido. Abrandei minha expressão, baixando meus olhos mais uma vez para a garota morta.

- Sou humano porque minto? – sorri, amargo. – Mentira, é tudo mentira. Sempre.

- Louis, não há nada no mundo mais sincero do que as suas mentiras.

Voltei meus olhos para ele, encarando suas pupilas acinzentadas. Ele estava sorrindo novamente. Franzi o cenho, tentando, sem sucesso, desvendar seu olhar.

Ele aproximou os lábios de meu ouvido.

- Nas pequenas mentiras você confessa as suas verdades – sussurrou. - E isso você não pode negar.

Soltei um suspiro, escondendo o rosto nas mãos. De um modo ou de outro, eu nunca conseguiria escapar.

- Venha – ele continuou, levantando-se e segurando-me pelas mãos. – Vamos para casa.

Permiti que ele me levantasse e o segui, deixando o corpo da garota para trás.

Estava começando a nevar.



Notas

[1] A Rainha dos Condenados, pág. 532.

[2] Louis se refere a Akasha, a vampira original dos livros de Anne Rice.